E assim desfilam, perante os nossos olhos, seres humanos para quem as nossas dúvidas, as nossas angústias, as nossas certezas e convicções, o nosso conceito de honradez, a nossa ideia de direito, de justiça, e de tantas outras questões que só aos humanos perturbam, são o pão-nosso de cada dia, e não nos sentimos tão sós.
Fica-me uma imensa pena, de, por falta de espaço e de tempo, não poder referir-me a cada um deles detalhadamente, e mostrar aqui, o que eu vejo em cada um de belo (na sua quase perfeição, quase imperfeição de deuses terrenos). Que pena tenho de não poder mostrar o quanto me impressiona a grandiosidade da figura da Maria Lionça, que escolheu sempre o outro para servir serenamente, sem queixas nem revolta; da Mariana, que inocentemente viveu a vida, de forma espontânea, límpida, transparente, alheia a segundas intenções, indiferente ao interesse humano, como uma verdadeira e autêntica força da natureza; do caçador, a quem só a velhice, por vir acompanhada de fraqueza roubou a inocência e consequentemente a alegria espontânea de viver; do povo de Saudel, que à força de ser paternalizado, infantilizado, deixou, como as crianças, de ser capaz de distinguir realidade de ficção; e de tantos, tantos outros que me servem de referência vezes sem conta!
A mim, que leio por prazer, por necessidade imperiosa, por impulso incontido, por uma mão cheia de razões, a mim que não sei quem sou, que me procuro nos textos, que como Fernando Pessoa (salvas as devidas distâncias) também sou " um espalhamento de cacos ", que busco nos textos respostas para as minhas inúmeras perguntas, solução para dilemas sem solução, companhia, consolo, justificação para um sem número de incapacidades, que busco, enfim, a felicidade que não existe senão em sonho, Miguel Torga, a quem eu muito devo, oferece-me um pouco de tudo: Companhia, (fazendo sentir ridícula e mesquinha a minha solidão ao lado das suas personagens " que se purificam com sofrimento universal num purgatório de chamas transmontanas "), consolo, porque também eu que, nas palavras de Fernando Pessoa, sinto que" Venho de longe e trago no perfil, / Em forma nevoenta e afastada, / O perfil de outro ser que desagrada/ Ao meu actual recorte humano e vil." E que por isso " trago às costas esta maldição/ De sofrer com razão ou sem razão / E de não ter alívio nas lágrimas que choro!" e Miguel Torga ajuda a atenuar a minha culpa ao redimir todos os homens, fazendo-me crer que " assim vivo infeliz. / Desesperado só por ser humano, / E humano sem saber, como é que fiz."), Afinal, " Todo de carne e osso, / como posso/ transfigurar-me?"
Assim, não como " Leitor do pitoresco ou do estranho, mas como sensível criatura tocada pela magia da arte e chamada pelos imperativos da vida " hoje regalo-me com os seus textos, amanhã comovo-me, depois cismo, e fico dias e dias ensimesmada, responsável pela " salvação da casa que, por arder, [me] [...] deslumbra os sentidos", e ganho força redobrada para " cortar as ondas sem desanimar" apesar de " A revolta imensidão / transforma [r] dia a dia a embarcação numa errante e alada sepultura...", porque " A honra é lutar sem esperança de vencer". E ganho coragem para continuar a não "contornar" o " muro" nem tentar" ultrapassá-lo de qualquer maneira", porque, nesta medida também toda a sua obra é exemplar.