quinta-feira, 28 de maio de 2015

Último apelo... à leitura!

“Ouve, meu filho, disse o demónio pondo-me a mão na cabeça…” Edgar Allen Poe

Desde que nasceu a famigerada Sociedade de Consumo e, com ela, as Massas, por definição acríticas e acéfalas, todos nos tornámos simples veículos de bens transaccionáveis. Já quase nada na nossa vida escapa ao apertado cerco da compra e da venda.
Hoje, sabe-se que a emergência destas circunstâncias não foi espontânea, muito menos inocente.
À medida que fomos fazendo o caminho do chamado progresso, asfixiado pelo turbilhão de falsas necessidades em que nos afogou, e cujo significado fomos, entretanto, perdendo de vista, em vez de termos construído a nossa liberdade, sonho primeiro e último da humanidade, condição essencial para a felicidade, sem darmos por isso, fomo-nos tornando num lamentável tipo de escravos que até a consciência da sua servidão perderam algures no tempo. Na verdade, atafulhado de informação, desinformação, coisas e obrigações, o nosso corpo passou a ocupar demasiado espaço: fomos vítimas de um processo lento, mas inexorável, de esvaziamento da alma, fomos privados da capacidade de pensar; deixámos de distinguir necessidade de capricho; deixámos de ter disponibilidade para fazer exames de consciência, para repensar as nossas atitudes e as nossas vidas, para nos elevarmos à qualidade de Humanos. A frase de Fernando Pessoa, que todos repetem e sobre a qual não reflectem, “Tudo vale a pena se a alma não é pequena” perdeu, aparentemente, o seu conteúdo, no meio do amontoado de bens transacionáveis, tendo-se tornado ela própria um deles. Pelo modo como se acomoda a generalidade das pessoas a todas as invasões e imposições racionais e irracionais de que são alvo, parece que já nada vale a pena, nem mesmo lutar e resistir. O facto de o “Monstro” ter deixado de ter forma e sobretudo ter deixado de ter rosto, desmobilizou a procura e responsabilização do culpado. E, pior de tudo, sem darmos por isso, cada vez mais sós, vamos transmitindo a nossa “sensatez cansada” aos nossos descendentes.
A alma, de facto, encolheu, até à asfixia. Entre o trabalho e as responsabilidades familiares, o turbilhão de necessidades, de vícios, de objectos, de notícias, de leis, de obrigações, que tornam “ O secretariado da [nossa] existência” um verdadeiro pesadelo, ficamos sem tempo nem energia para resistir. Daí que aceitemos que nos entrem em casa, sob diversos disfarces, nos regulem todos os comportamentos, nos imponham regras irracionais, em suma: façam de nós “gato sapato”.
Tornámo-nos os autómatos para cujo perigo havíamos sido alertados pela literatura.
Nas suas Cartas a Lucílio, Séneca disse“ Não temos de nos preocupar com viver muitos anos, mas vivê-los satisfatoriamente; porque viver muito tempo depende do destino; viver satisfatoriamente dependa da tua alma. A vida é grande quando é cheia e torna-se cheia quando a alma recuperou a posse do seu bem próprio e transferiu para si o domínio de si próprio”.  Há muito tempo que deixámos de ser donos de nós próprios. O vazio que sentimos, a multiplicação das depressões, não advém da crise, como acreditamos, mas deste vazio de alma.
 “ O admirável Mundo Novo” já se desenha, sem que nos apercebamos.
Entretanto, os livros, repositórios da beleza e sabedoria milenares e monumentais que construíram os nossos avós, legado hoje mais precioso do que nunca (neste tempo sem referências, nem raízes), caminham para a extinção, juntamente com a nossa alma, e vão acabar, reciclados, em grandes camiões TIR, ou grandes navios da marinha mercante, ou em porões de gigantescos aviões de transporte de carga, transformados em caixas de cartão, sob o nosso olhar vazio, reflexo da nossa alma esvaziada de sonho.
Savater afirma, no seu famoso livro Ética para um Jovem: “dos seres humanos exige-se umas vezes resignação e outras vezes rebeldia, umas vezes iniciativa e outras vezes obediência, umas vezes generosidade e outras vezes previsão do futuro etc…” . A grande tragédia do nosso tempo está intimamente relacionada com esta última exigência ao ser humano: a de prever o futuro. A velocidade a que se vive, hoje, não facilita esta previsão, mas o que mais a dificulta é a ausência do silêncio indispensável à reflexão, à busca de soluções dentro de si próprio e a perda do hábito cooperativo da procura conjunta. Todos, estamos meio anestesiados (alienados!) à espera de D. Sebastião. Todos somos responsáveis por inúmeros cataclismos (de ordem ecológica, social e cultural) e , a maioria de nós, nem sequer o sabe. Poderá, porém, a ignorância justificar um crime?




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