“Ouve, meu filho, disse o demónio pondo-me
a mão na cabeça…” Edgar Allen Poe
Desde que nasceu
a famigerada Sociedade de Consumo e, com ela, as Massas, por definição acríticas
e acéfalas, todos nos tornámos simples veículos de bens transaccionáveis. Já quase
nada na nossa vida escapa ao apertado cerco da compra e da venda.
Hoje, sabe-se
que a emergência destas circunstâncias não foi espontânea, muito menos
inocente.
À medida que
fomos fazendo o caminho do chamado progresso, asfixiado pelo turbilhão de falsas
necessidades em que nos afogou, e cujo significado fomos, entretanto, perdendo
de vista, em vez de termos construído a nossa liberdade, sonho primeiro e
último da humanidade, condição essencial para a felicidade, sem darmos por
isso, fomo-nos tornando num lamentável tipo de escravos que até a consciência
da sua servidão perderam algures no tempo. Na verdade, atafulhado de
informação, desinformação, coisas e obrigações, o nosso corpo passou a ocupar
demasiado espaço: fomos vítimas de um processo lento, mas inexorável, de
esvaziamento da alma, fomos privados da capacidade de pensar; deixámos de distinguir
necessidade de capricho; deixámos de ter disponibilidade para fazer exames de
consciência, para repensar as nossas atitudes e as nossas vidas, para nos elevarmos
à qualidade de Humanos. A frase de Fernando Pessoa, que todos repetem e sobre a
qual não reflectem, “Tudo vale a pena se a alma não é pequena” perdeu,
aparentemente, o seu conteúdo, no meio do amontoado de bens transacionáveis,
tendo-se tornado ela própria um deles. Pelo modo como se acomoda a generalidade
das pessoas a todas as invasões e imposições racionais e irracionais de que são
alvo, parece que já nada vale a pena, nem mesmo lutar e resistir. O facto de o
“Monstro” ter deixado de ter forma e sobretudo ter deixado de ter rosto,
desmobilizou a procura e responsabilização do culpado. E, pior de tudo, sem
darmos por isso, cada vez mais sós, vamos transmitindo a nossa “sensatez
cansada” aos nossos descendentes.
A alma, de
facto, encolheu, até à asfixia. Entre o trabalho e as responsabilidades
familiares, o turbilhão de necessidades, de vícios, de objectos, de notícias,
de leis, de obrigações, que tornam “ O secretariado da [nossa] existência” um
verdadeiro pesadelo, ficamos sem tempo nem energia para resistir. Daí que
aceitemos que nos entrem em casa, sob diversos disfarces, nos regulem todos os
comportamentos, nos imponham regras irracionais, em suma: façam de nós “gato
sapato”.
Tornámo-nos os
autómatos para cujo perigo havíamos sido alertados pela literatura.
Nas suas Cartas a Lucílio, Séneca disse“ Não
temos de nos preocupar com viver muitos anos, mas vivê-los satisfatoriamente;
porque viver muito tempo depende do destino; viver satisfatoriamente dependa da
tua alma. A vida é grande quando é cheia e torna-se cheia quando a alma
recuperou a posse do seu bem próprio e transferiu para si o domínio de si
próprio”. Há muito tempo que deixámos de
ser donos de nós próprios. O vazio que sentimos, a multiplicação das
depressões, não advém da crise, como acreditamos, mas deste vazio de alma.
“ O admirável Mundo Novo” já se desenha, sem
que nos apercebamos.
Entretanto, os livros, repositórios da beleza e sabedoria
milenares e monumentais que construíram os nossos avós, legado hoje mais
precioso do que nunca (neste tempo sem referências, nem raízes), caminham para
a extinção, juntamente com a nossa alma, e vão acabar, reciclados, em grandes
camiões TIR, ou grandes navios da marinha mercante, ou em porões de gigantescos
aviões de transporte de carga, transformados em caixas de cartão, sob o nosso
olhar vazio, reflexo da nossa alma esvaziada de sonho.
Savater afirma,
no seu famoso livro Ética para um Jovem:
“dos seres humanos exige-se umas vezes resignação e outras vezes rebeldia, umas
vezes iniciativa e outras vezes obediência, umas vezes generosidade e outras
vezes previsão do futuro etc…” . A grande tragédia do nosso tempo está
intimamente relacionada com esta última exigência ao ser humano: a de prever o
futuro. A velocidade a que se vive, hoje, não facilita esta previsão, mas o que
mais a dificulta é a ausência do silêncio indispensável à reflexão, à busca de
soluções dentro de si próprio e a perda do hábito cooperativo da procura conjunta.
Todos, estamos meio anestesiados (alienados!) à espera de D. Sebastião. Todos
somos responsáveis por inúmeros cataclismos (de ordem ecológica, social e
cultural) e , a maioria de nós, nem sequer o sabe. Poderá, porém, a ignorância
justificar um crime?
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