Eles não sabem
que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer
António Gedeão
“Ambicionamos falar a língua dos sonhos e só ganhamos
individualidade quando aprendemos a falar a língua de todos os homens, a língua
dos sonhos”.
Mia Couto
Cinco
anos depois da imposição do malfadado Acordo Ortográfico, contra a crescente
onda de acomodados, todos os pensadores, escritores e artistas vivos que
respeito continuam a resistir estoicamente, recusando o efeito perverso da
lavagem de alma provocada pela transformação das palavras que nos ajudaram a
crescer, de objectos íntimos, nossos, em objectos estranhos.
Aquela
velha ligação afectiva e a forma como se acomodaram a generalidade dos
portugueses, subtilmente conduzidos pelos computadores pessoais que, sem que
lhes tivessem dado ordem os seus donos, começaram, como que por milagre, a
ostentar correcções às palavras que sempre haviam conhecido, está expressa, de
forma jocosamente séria num texto que circulou pela internet, cujo autor
infelizmente desconheço, mas gostaria de conhecer:
“Quando eu escrevo a
palavra acção, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o C na
pretensão de me ensinar a nova grafia.
De forma que, aos
poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que
parece, estavam a mais na língua portuguesa.
Custa-me despedir-me
daquelas letras que tanto fizeram por mim.
São muitos anos de
convívio.
Lembro-me da forma
discreta e silenciosa como todos estes CCC's e PPP's me acompanharam em tantos
textos e livros desde a infância.
Na primária, por vezes
gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: - não te esqueças de mim!
Com o tempo, fui-me
habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda
bem que estás aí.
E, com a ajuda (interesseira) do computador pessoal,
dos meios de comunicação, de um sem número de textos subtilmente colocados
debaixo dos nossos olhos, lá fomos nós, quais obedientes carneiros encaminhados
para o redil, mudando a nossa forma de escrever e de pensar (na verdade, há
quanto tempo não pensamos senão em dinheiro e em trabalho?)
Até
um homem assumidamente de direita (um dos nossos poucos grandes mestres),
Adriano Moreira, afirmou que "A língua não obedece a tratados. (…) Estamos
todos atentos à língua, mas não pensamos dar ordens à língua.”
“ Tanto a virtude como o vício estão em nosso
poder. (…)de maneira que, se está em
nosso poder agir quando é belo fazê-lo, estará em nosso poder não agir quando é
vergonhoso” disse Aristóteles na sua Ética a Nicómano. E a obediência cega a
este (des)acordo envergonha-me.
Mesmo
assim, cuidei de saber as razões dos seus defensores, desde o início. Constatei
que os seus argumentos eram tão frágeis, diria, até, forjados, que nenhum me
convenceu.
O
mais badalado de todos, o facto de ter havido outros acordos antes, é de uma
tal fragilidade que cai por terra ao primeiro sopro: Também houve escravos
antes, e pena de morte antes, e muitas outras coisas antes (que ferem, hoje, a
sensibilidade do mais cruel energúmeno), e nem por isso as repetimos. O mundo
caminha para a frente e para cima, nunca para trás e para baixo. Os níveis de
consciência estão, hoje, a anos –luz de distância das mentalidades de 1911 e de
1945. Hoje preserva-se o património. Hoje respeita-se a diferença e ama-se a
diversidade. Hoje, os homens são iguais em direitos e gozam do direito à
diferença…
O
respeito que me merecem os dissidentes e a falta de respeito que nutro pelos
decisores são de tal ordem, que nasceu em mim um preconceito: já meço a
sensibilidade dos meus interlocutores pelo modo como se situam face ao Acordo
Ortográfico. Dou comigo a respeitar, sem conhecer, todo aquele que se manifeste
publicamente contra o acordo, ou que simplesmente o não respeite, e dou comigo
a desconfiar de quem o aceita acriticamente.
“Uma
língua é um organismo vivo e, segundo o seu contexto social, geográfico,
histórico, demográfico, económico, geopolítico, transforma-se imprevisivelmente(…)
[em]casos extremos, geniais, que
subvertem a língua ao ponto de inventarem novas sintaxes dentro da sintaxe habitual,
o espaço virtual de liberdade interna da
língua(…) solta [-se] e ousa, Então descobre-se a maravilha de ser possível
(…)um insuspeitável sentido das coisas, um outro pensamento.” Diz José Gil.
Mas a massa prefere não
pensar. De que lhe serve “um outro pensamento”, para além do expressamente
cozinhado para si, nestes tempos em que é rainha a normalização?
O conforto passou a ser
o Deus de todos nós. As noções de honradez e de dignidade humana foram
adaptadas às conveniências de cada um, para seu conforto.
Até o Verbo se esvaziou.
A designada “agenda oculta” segue o seu curso em
paz.
Jovens desalentados
face à nossa “sensatez cansada” escolhem a alienação de um mundo esvaziado de
conteúdo e de alma, oco, sem perspectivas, sem Deuses e sem causas.
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