ão somos apenas
usuários da língua, somos seus autores”
Mia Couto
Inventaram
uma nova linguagem para nos despojarem da nossa. O Verbo, o Sopro Divino que
alimenta o espírito, deixou de ser sagrado e passou a ser um objecto de
comércio.
O
aparecimento súbito das palavras esqueléticas apanhou-me desprevenida.
Chocou-me de tal modo que fiquei de sobreaviso. Não conseguia exprimir a
revolta que as palavras truncadas, travestidas, nuas, vazias, me suscitavam
…Não queria acreditar que tivessem prosseguido com o massacre anunciado!
Quando, porém, lenta e inexoravelmente, as alienígenas, desoladas “coisas”
começaram a esborrachar-se-me, diariamente, como socos, contra a retina, em
avisos, em actas, em títulos de jornais, em rodapés, em legendas…cresceu em mim
uma sensação de mágoa, de perda…
Apesar
de vivermos num tempo em que parecem ter desaparecido da face da terra os
mestres (creio que estão recolhidos, preservados do perigo de andarem entre os homens
e ficarem menos homens), o ser comum parece estar sempre à espera que alguém
resolva, por ele, os seus próprios problemas, por um lado. Por outro, a
ignorância generalizada permite que charlatões se façam passar por mestres.
Procurei abrigo nos mestres. Verifiquei que,
também eles, se sentiam agredidos. Percebi que se haviam associado para
apresentar, aos dirigentes da nação, um Manifesto Contra o Acordo Ortográfico,
sob a forma de petição e que, apesar de esta ter sido entregue, acompanhada de
32000 assinaturas, de ter sido apreciada pela Comissão de Ética, Sociedade e
Cultura, que recomendou que as preocupações dos peticionários fossem tidas em
conta, nunca esta recomendação levou à alteração de uma vírgula, sequer. A
falta de respeito pelos guardiões do património linguístico nacional: os
escritores, os poetas, os pensadores portugueses mais respeitados no país e no
mundo .Eduardo Lourenço, Vasco Graça Moura e Vítor Manuel Aguiar e Silva, entre
muitos outros- deixou-me perplexa! Monumentos da nossa cultura, reconhecidos
por todos e ignorados pelos que “ não são dignos de lhes apertar as correias
dos sapatos”!
O
apagamento dos vestígios etimológicos nas palavras, a passagem de uma borracha
sobre a sua história, tem sobre mim o mesmo efeito que a substituição dos
caminhos e dos campos da minha infância por estradas largas, alcatroadas e
prédios feios e despropositados. Já não encontro lá vestígio algum de mim
própria. Com a minha língua começa a acontecer o mesmo. Não me reconheço nela.
Num
tempo em que as palavras de ordem são “diversidade”, “defesa e preservação do
património”; num tempo em que o conhecimento nos trouxe a noção de língua como
organismo vivo, que, como tal, traz em si própria a génese da mudança, mudá-la
por decreto, não é compreensível. Dizer que já houve mudanças forjadas, antes,
não apazigua a minha revolta. Também se cometeram inúmeros outros crimes contra
a humanidade antes, o que não justifica a sua repetição, hoje.
Mia Couto,
que, como Pessoa, estabeleceu com a língua que todos partilhamos, uma relação
de intimidade única e que, com roupagens nunca vistas, a vestiu para melhor
poder expressar a sua alma, (nem por isso deixamos de a reconhecer e de nos
identificarmos com ela), afirmou num dos encontros “Correntes D’Escritas” que “Precisamos de uma escola que nos liberte
da dimensão funcional da palavra, para que sejamos inventores da língua e
viajantes do sonho”. Questionado
sobre a particularidade que nos permite identificar grande parte dos seus
textos- a reinvenção sistemática de palavras- e sobre se “cada homem é uma
língua”, uma paráfrase do titulo de um dos seus livros, respondeu: que
cada homem "deve ser uma nação bilingue", tendo uma língua para os
aspectos funcionais da vida e outra para "lidar com o incapturável" e
afirmando que "quanto mais manipularmos a língua, menos manipuláveis
seremos".
Creio
que é aqui que reside a grande questão do AO: temos de perder a nossa
capacidade única de nos reinventarmos, sonhando. É a dimensão funcional, de
preferência, sem réstea de laços afectivos, que importa agora impor, até que a
língua se transforme num mero instrumento utilitário, como um garfo, um
sabonete ou um lavatório.
José
Gil, um dos maiores filósofos da actualidade, cuja opinião também tem sido
desprezada pelos que deveriam servi-lo, considera “o Acordo Ortográfico repressivo e destruidor”, “néscio e grosseiro” porque “ afecta não só a
forma da língua portuguesa como o nosso pensamento”. Já dominam totalmente a
nossa vida. Resta o domínio da nossa forma de pensar. Com esta língua rochosa,
desconhecida e “empobrecida” será cada vez mais fácil “ a suave lavagem de
cérebro” pretendida.
Aos
meus olhos não se trata de arbitrariedade mas de um propósito a acrescer a
tantos outros: ajudar o processo, em curso, de idiotização das massas, a
produzir o efeito desejado. Há programas de televisão, revistas, jornais,
anúncios, políticas, e uma panóplia de outras coisas, que têm na sua “agenda
oculta” um plano definido de garantir que esta idiotização em massa esteja
assegurada, a longo prazo.
Este
processo tem sido, massivo e avassalador!
Resta
um punhado de visionários, a pregar no deserto, por falta de ouvidos capazes de
ouvir e de olhos capazes de ver…
Savater,
um filósofo espanhol que se dirige frequentemente aos jovens, afirma na sua Ética para um Jovem: “Sou de opinião (…)
de que quando se trata uma pessoa como se fosse idiota, é muito provável que,
se ela não o for já, depressa acabe por sê-lo.”
De
orelhas descaídas, cabeça baixa, chapéu na mão, deixámos descaracterizar a nossa
língua como já tínhamos deixado descaracterizar a nossa cultura e a nossa vida.
A nova organização mundial não comporta
cidadãos pensantes.
Benvindos
ao limiar do “Admirável Mundo Novo”!
Sem comentários:
Enviar um comentário