quinta-feira, 28 de maio de 2015

Mais um grito de protesto contra o AO

ão somos apenas usuários da língua, somos seus autores”
Mia Couto
Inventaram uma nova linguagem para nos despojarem da nossa. O Verbo, o Sopro Divino que alimenta o espírito, deixou de ser sagrado e passou a ser um objecto de comércio.
O aparecimento súbito das palavras esqueléticas apanhou-me desprevenida. Chocou-me de tal modo que fiquei de sobreaviso. Não conseguia exprimir a revolta que as palavras truncadas, travestidas, nuas, vazias, me suscitavam …Não queria acreditar que tivessem prosseguido com o massacre anunciado! Quando, porém, lenta e inexoravelmente, as alienígenas, desoladas “coisas” começaram a esborrachar-se-me, diariamente, como socos, contra a retina, em avisos, em actas, em títulos de jornais, em rodapés, em legendas…cresceu em mim uma sensação de mágoa, de perda…
Apesar de vivermos num tempo em que parecem ter desaparecido da face da terra os mestres (creio que estão recolhidos, preservados do perigo de andarem entre os homens e ficarem menos homens), o ser comum parece estar sempre à espera que alguém resolva, por ele, os seus próprios problemas, por um lado. Por outro, a ignorância generalizada permite que charlatões se façam passar por mestres.
 Procurei abrigo nos mestres. Verifiquei que, também eles, se sentiam agredidos. Percebi que se haviam associado para apresentar, aos dirigentes da nação, um Manifesto Contra o Acordo Ortográfico, sob a forma de petição e que, apesar de esta ter sido entregue, acompanhada de 32000 assinaturas, de ter sido apreciada pela Comissão de Ética, Sociedade e Cultura, que recomendou que as preocupações dos peticionários fossem tidas em conta, nunca esta recomendação levou à alteração de uma vírgula, sequer. A falta de respeito pelos guardiões do património linguístico nacional: os escritores, os poetas, os pensadores portugueses mais respeitados no país e no mundo .Eduardo Lourenço, Vasco Graça Moura e Vítor Manuel Aguiar e Silva, entre muitos outros- deixou-me perplexa! Monumentos da nossa cultura, reconhecidos por todos e ignorados pelos que “ não são dignos de lhes apertar as correias dos sapatos”!
O apagamento dos vestígios etimológicos nas palavras, a passagem de uma borracha sobre a sua história, tem sobre mim o mesmo efeito que a substituição dos caminhos e dos campos da minha infância por estradas largas, alcatroadas e prédios feios e despropositados. Já não encontro lá vestígio algum de mim própria. Com a minha língua começa a acontecer o mesmo. Não me reconheço nela.
Num tempo em que as palavras de ordem são “diversidade”, “defesa e preservação do património”; num tempo em que o conhecimento nos trouxe a noção de língua como organismo vivo, que, como tal, traz em si própria a génese da mudança, mudá-la por decreto, não é compreensível. Dizer que já houve mudanças forjadas, antes, não apazigua a minha revolta. Também se cometeram inúmeros outros crimes contra a humanidade antes, o que não justifica  a sua repetição, hoje.
Mia Couto, que, como Pessoa, estabeleceu com a língua que todos partilhamos, uma relação de intimidade única e que, com roupagens nunca vistas, a vestiu para melhor poder expressar a sua alma, (nem por isso deixamos de a reconhecer e de nos identificarmos com ela), afirmou num dos encontros “Correntes D’Escritas” que “Precisamos de uma escola que nos liberte da dimensão funcional da palavra, para que sejamos inventores da língua e viajantes do sonho”. Questionado sobre a particularidade que nos permite identificar grande parte dos seus textos- a reinvenção sistemática de palavras- e sobre se “cada homem é uma língua”, uma paráfrase do titulo de um dos seus livros, respondeu: que cada homem "deve ser uma nação bilingue", tendo uma língua para os aspectos funcionais da vida e outra para "lidar com o incapturável" e afirmando que "quanto mais manipularmos a língua, menos manipuláveis seremos".
Creio que é aqui que reside a grande questão do AO: temos de perder a nossa capacidade única de nos reinventarmos, sonhando. É a dimensão funcional, de preferência, sem réstea de laços afectivos, que importa agora impor, até que a língua se transforme num mero instrumento utilitário, como um garfo, um sabonete ou um lavatório.
José Gil, um dos maiores filósofos da actualidade, cuja opinião também tem sido desprezada pelos que deveriam servi-lo, considera “o Acordo Ortográfico  repressivo e destruidor”,  “néscio e grosseiro” porque “ afecta não só a forma da língua portuguesa como o nosso pensamento”. Já dominam totalmente a nossa vida. Resta o domínio da nossa forma de pensar. Com esta língua rochosa, desconhecida e “empobrecida” será cada vez mais fácil “ a suave lavagem de cérebro” pretendida.
Aos meus olhos não se trata de arbitrariedade mas de um propósito a acrescer a tantos outros: ajudar o processo, em curso, de idiotização das massas, a produzir o efeito desejado. Há programas de televisão, revistas, jornais, anúncios, políticas, e uma panóplia de outras coisas, que têm na sua “agenda oculta” um plano definido de garantir que esta idiotização em massa esteja assegurada, a longo prazo.
Este processo tem sido, massivo e avassalador!
Resta um punhado de visionários, a pregar no deserto, por falta de ouvidos capazes de ouvir e de olhos capazes de ver…

Savater, um filósofo espanhol que se dirige frequentemente aos jovens, afirma na sua Ética para um Jovem: “Sou de opinião (…) de que quando se trata uma pessoa como se fosse idiota, é muito provável que, se ela não o for já, depressa acabe por sê-lo.”
De orelhas descaídas, cabeça baixa, chapéu na mão, deixámos descaracterizar a nossa língua como já tínhamos deixado descaracterizar a nossa cultura e a nossa vida.
 A nova organização mundial não comporta cidadãos pensantes.

Benvindos ao limiar do “Admirável Mundo Novo”!

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