Acreditamos, como Agostinho da Silva, que “o homem não nasceu para trabalhar mas para criar”. Acreditamos, para além disso, que não é por acaso que, de entre todos os animais, só o homem tem essa capacidade inventiva que lhe permite, de forma criativa, dominar, pelo menos em parte, a natureza, que lhe é igualmente adversa.
Pensamos que há, neste momento histórico, uma total subversão desta vocação. O trabalho, associado ao lucro, parece a única vertente da vida humana que vale a pena prosseguir. O nosso conceito de criatividade tem muito mais a ver com o conceito a ele associado de autonomia e liberdade do que a procura cega de novos objectos de utilidade discutível para impor aos inúmeros consumidores compulsivos.
Enquanto os animais vão adquirindo, ao longo de milhares e milhares de anos características físicas que lhes permitem resistir a predadores e condições ambientais, o facto de o homem não ter desenvolvido essa potencialidade de forma significativa, acrescido da terrível condição de ele ser predador de si próprio, faz dele um ser imensamente vulnerável, por isso possui dentro de si mecanismos próprios que o ajudam a enfrentar adversidades.
Assim, cada ser humano, único e irrepetível, foi dotado de uma capacidade única e irrepetível de responder aos problemas, também eles sempre diferentes, que se lhe vão colocando ao longo da vida. Seria, supostamente, na união de todas essas capacidades que a humanidade, como um todo, responderia a todas as dificuldades que tem de enfrentar enquanto espécie. O estilo de vida pós-industrial, no entanto, ao ter dado início a um processo vertiginoso de transformação da acção humana numa gigantesca linha de montagem, na qual a generalidade dos homens, anestesiados, não passam de simples parafusos da própria engrenagem, tem vindo a afastá-los da sua essência: a vontade de sonhar/criar. Parece que, subitamente, “Deus [já não] quer, o homem [já não] sonha e a obra [já não nasce]”.De repente achamo-nos órfãos, de regresso à nossa condição de recém-nascidos, rodeados de um punhado de predadores/ manipuladores que, a pretexto de uma pseudo-protecção do género humano, tomaram de assalto o nosso sonho, apoderando-se da nossa criatividade e colocando-a ao seu serviço. Hoje, já 300 anos depois, com uma gigantesca máquina de produzir não importa o quê, não importa como, não importa para quê, a dominar a nossa vida, perdemos de vista o significado da palavra criar e tornamo-nos todos predadores: de repente todos estamos propensos a consumir, não importa o quê, e, simultaneamente, presas indefesas de quem nos impinge o que quer que consumamos. Enormes contradições as deste século! Não cremos que a criatividade que nos faz falta, agora, seja aquela que fazia falta há quinhentos anos, quando os meios de produção e o conhecimento não garantiam, ainda, a subsistência de todos. As próteses criadas pelo homem até ao momento já lhe permitem dar resposta cabal a esse problema, assim ele o queira. Para ser verdadeiramente humana, nessa realização só falta fazê-la chegar a todos os homens, a todos os cantos do mundo. Faz-nos falta outro tipo de criatividade: a capacidade de questionar a realidade, de pensar pela própria cabeça, de se deixar conduzir autonomamente por um sonho único e irrepetível, que associado a todos os sonhos únicos e irrepetíveis nos torne cada vez mais humanos, afastando-nos cada vez mais do instinto predatório!
Não é esse, porém, o conceito “politicamente correcto” de criatividade. Temos a firme convicção de que o que faz falta neste momento é aproveitar todos os meios que têm sido colocados à nossa disposição e usá-los com criatividade, ao serviço do bem comum, já que foi esse sonho de bem comum que nos trouxe até aqui. Foi esse desejo de bem comum que esteve na origem da Magna Carta, da Revolução Francesa, da Revolução Americana, da ONU, da UNICEF, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de tudo o que de incontestável se conquistou e se está em vias de perder porque nos arrebanharam para uma causa que não é a nossa. Não é de mais sapatos, de mais roupa, de mais carros, de mais computadores, de mais fast food, de mais móveis, de mais objectos que precisamos. Temos, de facto, falta de criatividade porque, em vez de resolvermos, a denominada crise económica, como é suposto resolver qualquer crise, isto é, como uma oportunidade de “separar o trigo do joio”, deixámos de ter capacidade de pensar razões e soluções plausíveis para uma oportunidade de crescimento humano. E não há crises com um espectro tão vasto que o possam ser apenas económicas. A falta de criatividade, por falta de autonomia, na era da manipulação mediática e mediatizada, é, fundamentalmente, visível no modo normalizado como todos pensam a entediante crise, de como todos pensam nas mesmas soluções gastas e que para ela contribuíram: o excesso de consumo e a falta ,generalizada e induzida, de espírito crítico.
Como a natureza e os seus mecanismos intrínsecos de reequilibração são mais sábios do que qualquer plano humano, paradoxalmente, a drenagem dos cérebros daqueles que poderiam resolver a crise económica, vai, sem que aqueles se apercebam, ser o factor de alargamento dos benefícios conquistados a todas as partes desfavorecidas do mundo por onde se têm espalhado por razões predatórias, sem que haja da parte da maioria alguma intenção solidária desinteressada, o que não deixa de ser curioso. Quer os homens queiram, quer não, as conquistas justas de alguns acabam, inevitavelmente, por se estender a todos, tal como seria de esperar de uma espécie animal onde cada um tem um papel preponderante no todo, ainda que seja inconsciente. É a criatividade, como necessidade, como pulsão de sobrevivência, que está a empurrar os jovens para os países que necessitam da sua presença para crescerem. Quanto à dívida pública à qual nós, os que cá ficam, a maioria dos comuns dos mortais, somos alheios e somos obrigados a pagar, talvez devêssemos arranjar uma forma criativa de responsabilizar os verdadeiros culpados, estudando exaustivamente a forma como foi contraída e por quem, e o modo como foram geridos os impostos que pagámos, e obrigar os culpados a pagá-la.